As pessoas me perguntam constantemente se a religião tem um papel relevante nos dias de hoje. Citam, justificando sua dúvida, coisas como a ciência, a possibilidade de se levar uma vida moral sem a necessidade de um ser supremo ditando regras, apenas baseado na nossa pura humanidade e desejo intrínseco de fazer o bem; ultimamente têm me falado muito nos últimos avanços tecnológicos, principalmente a inteligência artificial, como sendo um elemento que mudará paradigmas, nos afastando ainda mais da capacidade de aceitar uma série de dogmas criados há muitos séculos, num trecho da história que já em quase nada se assemelha ao nosso.
Outro argumento muito usado é o de que as pessoas precisavam psiquicamente da religião porque não compreendiam a natureza ao seu redor, nem a dominavam. Se depreende daí que essa situação de incompreensão fez com que se criassem coisas como os mitos de criação ou fundadores de uma determinada sociedade, de onde se extraíam explicações de “por quê fazemos assim ou assado”.
A liberdade é outra questão que faz com que algumas dessas pessoas considerem que a religião está se tornando obsoleta. Antigamente se vivia numa sociedade com regras de conduta muito mais rígidas que as que temos hoje, num tecido social mais coeso (ainda que à força) e havia, portanto, menos liberdade para se pensar, falar, agir, ser diferente. Este estado de coisas cerceava, talvez principalmente, o trânsito livre de ideias discrepantes das impostas pela hierarquia social. Por este motivo, quem pensava diferente, caso se manifestasse, era reprimido, ostracizado e inclusive morto.
Mas hoje, não! Temos uma situação muito distinta, onde todos os pontos acima foram reorganizados de outra maneira: conhecemos o bem porque temos acesso à literatura que fala sobre ele, grandes obras de grandes homens que ilustram com precisão e riqueza de detalhes os direitos e os deveres dos seres humanos e, evidentemente, as vantagens de se viver de forma harmônica, ampliando as benesses da civilização para o máximo possível de nós. Claro que ninguém tampouco está dizendo que é desta forma que vivemos; apenas se aponta que conseguimos compreender com facilidade esses conceitos, e inclusive que ninguém os põe em causa, pois o bem da humanidade (ou o bem na humanidade) é a circunstância ideal para todos e mesmo para os seres não-humanos. Não precisamos de Deus e nem de religião para isso: nosso próprio caminhar na Terra nos mostrou o que é o melhor, o que é o pior e, em sã consciência, qualquer um optará pelo melhor, se puder.
Um outro ponto é que a natureza, embora não inteiramente dominada, já é bastante compreendida e não nos causa medo; conhecemos os seus movimentos, podemos prever muitos deles, temos meios de nos organizarmos para conviver com ela de maneira satisfatória. Não creditamos desequilíbrios ou desastres naturais à ira de nenhum deus, sendo muitas vezes apenas nossa própria irresponsabilidade a gerar resultados indesejáveis, e, outras ainda, o inevitável que, entretanto, não nos assusta irracionalmente. O acidente, o desastre e a morte são partes naturais da vida e as religiões tampouco têm o poder de impedi-los.
Por fim, somos de um modo geral livres para pensar, falar, agir e ser como quisermos, mudando de país, de costumes, de nome; nessas mudanças, aprendemos mais sobre formas diferentes de ser e isso nos mostra que nenhuma religião possui uma cartilha completa de respostas, havendo antes acertos aqui e ali. Não há religiões melhores ou piores e os níveis de acerto e erro, de adivinhação e de certeza são os mesmos em todas elas. Podemos nos afiliar a quem quisermos, quando quisermos: jamais teremos 100% de razão.
Ou seja, as religiões são iguais em suas diferenças, distintas em suas semelhanças. Aqui onde estamos, nessa quadra histórica, nenhuma é realmente necessária. Os dogmas religiosos são cada vez mais incompatíveis com a nossa mente científica, racional, aberta. As distâncias tendem a se ampliar e, para estar numa religião hoje, é preciso abdicar pelo menos parcialmente das conquistas da mente, das explicações científicas, dos novos anseios e horizontes que a evolução tecnológica nos promete; das relações democráticas e, até certo ponto, transparentes que conseguimos estabelecer, de certa forma difíceis de se plasmar plenamente no ambiente religioso, que tende sempre ao hierárquico. As estórias da religião podem até soar, perto da grande literatura mundial, infantis ou simplórias, acima de tudo por seus objetivos cordeirizantes, moralizantes, com sua forma dualista de ver o mundo e de dividir os personagens em bons e maus, desobedecendo a regra da vida real, que é a complexidade absoluta a todo momento.
A religião, me dizem essas pessoas, é, em si mesma, incompatível com o que somos e, acima de tudo, com o que queremos ser, que é uma versão aperfeiçoada do ser que aglomera em si as características destacadas acima.
Mas estas pessoas não apenas me dizem isso. Elas me perguntam o que eu acho. Algumas até se espantam de eu fazer uma escolha pela religião e me questionam desde um ponto genuíno de curiosidade e espanto. Então, querem mesmo saber.
Eu falo um pouco sobre esse tema neste vídeo aqui, de mesmo nome que esse texto. Mas vou detalhar um pouco mais meu pensamento por escrito nas próximas semanas.
[Fim da parte I]
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