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O Papel da Religião nos Nossos Dias – II

Foto do escritor: Flavia VirginiaFlavia Virginia

[Leia aqui a primeira parte]


Estamos diante de um problema circular. Compreender a religião por meio de si própria, a meu ver, é que é o principal responsável por esse entendimento que conclui inequivocamente pela sua obsolescência. A religião, vista pelos seus próprios olhos, teria necessariamente que se tornar obsoleta quando mudassem as condições daquilo que ela parece tratar . Então, munidos de um sentimento de progresso, de avanço, de evolução, a religião perderia seu lugar, porque estes não se encontram nela. Antes, a religião costuma ser o locus onde as coisas podem permanecer o que sempre foram, ou quase iguais a isto – sendo este um de seus principais atrativos, aliás. Algo que mantenha uma certa estabilidade num mundo tão mutável, tão instável, traz um conforto sempre muito desejado.


Mas a religião não dispõe de muitos meios para discutir a si própria, porque ela mesma não é seu principal objeto de escrutínio. Ela costuma ser normativa, verdade, mas, como essa normatividade vem “de cima para baixo”, a análise sobre seus motivos ou validade é sempre menos importante que o atestar da eficácia das suas práticas, ou, quando nem isso é possível, a religião se contenta em dizer “porque assim é como os deuses se agradam” e, visto que agradar os deuses é primordial e que eles mesmos são os personagens centrais do afazer religioso, tudo encontra boa saída, pelo menos no tangente à prática espiritual coletiva. Não quer dizer que não haja dúvidas; no entanto, estas são como as moedinhas no fechamento do caixa: sempre faltam algumas, mas o comércio não vai fechar por causa delas. Além do mais, dizem os sensatos, por que não haveria dúvidas, neste mundo tão imperfeito? E fica por isso mesmo.


O problema é circular porque a religião não pode discutir a si própria, mas precisa continuar se validando sem essa discussão e, mais que isso, precisa ir se defendendo das flechadas que o pensamento moderno, científico, racional, enfrentador dos nossos dias dá através dos adeptos indecisos ou daqueles que estão completamente fora. O círculo interno, o círculo externo: todos atacam a religião a cada tanto. E não é preciso se considerar ateu: basta ter problema com a falta de alguns atributos racionais, algo que é próprio à religião.


Sim, porque, em parte, o problema está não na religião em si, mas nas pessoas que se consideram a ela superiores por conta de terem, com sua própria racionalidade, solucionado a questão do medo, manifesta em pelo menos três formas distintas (apresentadas na parte I deste texto). A mente moderna não reconhece bem onde se situa seu próprio medo e acha que só antigos o sentiam. Ela se sente poderosa porque afastou os perigos visíveis. De fato, é um bom motivo. Mas não é suficiente. O medo, diferentemente do que seria ideal, não existe em nossas vidas por conta daquilo que conhecemos como mau. Temos medo até do que é bom! O medo é constitutivo da experiência de estar vivo e é até provável que a sua eliminação completa, caso fosse possível, lavasse de nós também os componentes mais intrinsecamente humanos. Aliás, quanto a este ponto o judaísmo faz uma assunção bem bonita, ao mencionar a importância do sentimento de Irat Shamayim (Espanto com os Céus) – mas não como algo puramente racional; é preciso a poesia da irracionalidade para poder apreciar este passo.


E, falando em poesia da irracionalidade, a mente moderna crê que é definitivamente mais racional que os antigos, mais lógica, mais aferrada à ciência e ao conhecimento – portanto, segundo seus próprios critérios, mais próxima da verdade. Suas experiências científicas lhe indicam que sim; mas isto se dá porque, tanto quanto para os antigos, são as apreciações do intelecto que ditam o que é verdadeiro e o que é falso.


Sabemos muitas coisas, mas nos aferramos a conceitos errôneos, a erros de cálculo e partimos de buracos de saber tanto quanto quaisquer outros povos. Apenas, também como eles, criamos um mundo que está baseado naquilo que sabemos, ou seja, constituímo-nos e ao mundo em conformidade com os nossos conhecimentos. Mas tudo o que somos, sem exceção, está feito sobre o que já havia antes. Os antigos e nós estamos separados pelo tempo, mais que pelo saber… e quase só isso. Não se morria mais antes que agora. Podemos prolongar nossas vidas mais que eles e isso é ótimo, mas, se soubéssemos o que eles sabiam, viveríamos tanto quanto eles viviam, não mais, porque não somos dotados de uma inteligência maior, somos dotados de um tempo com outro acúmulo de saberes, o que é muitíssimo distinto. As casas que eles construíam não caíam e muitas estão de pé até hoje; suas comidas eram mais saudáveis e eles eram definitivamente mais fortes e resistentes; seus textos eram obras-primas da produção intelectual humana a ponto de fundarem disciplinas procuradíssimas ainda em nossos dias e nunca cansamos de nos maravilhar com suas obras arquitetônicas, com sua cerâmica, com a engenhosidade de seus artefatos, de sua poesia.


Em tudo nós somos eles. Maravilhas do DNA, da arte, do espírito.


[Fim da parte II]

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